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Carta aberta à produção nacional

Nota: Esta crónica foi escrita como uma semi-brincadeira em Setembro de 2011 e publicada inicialmente no facebook. Mas todas as brincadeiras têm uma base de verdade, e é de notar que a minha opinião pouco se alterou em relação a este tema. Se hoje poderia ter escrito isto com mais jeitinho, fica aqui o texto original, que ainda não tinha publicado neste blog.

Caros senhores que produzem séries, novelas e filmes portugueses.

Sendo um infeliz possuidor de uma televisão LG LCD no meu domicílio, e um infortunado assinante da MEO no mesmo domicílio supracitado, de vez em quando, por mero lapso asseguro-vos, tenho a infelicidade e/ou o infortúnio de me deparar com algumas das vossas obras. Assim sendo, e com todo o devido respeito que é devido a senhores tão acima na cadeia alimentar como são os senhores, permitam que um infeliz e/ou infortunado espectador vos faça uma série de perguntas.

Primeiro, onde encontrais os vossos actores? Tudo o que se recusa a fazer anúncios ao Pingo Doce para baixo é peixe para a vossa rede? É o jovem aspirante a actor tão fraco que não encontrais melhor? Não pode ser, visto eu fazer e ver teatro jovem há vários anos e já ter partilhado o palco com gente muito talentosa. Terão eles medo de vós, por algum motivo, e se escondam aquando das audições? Ou sereis vós estrábicos (quiçá zarolhos) em relação ao talento? Sereis vós tão subsídio-dependentes, tão desejosos de agradar a A, B ou C, tão desesperados em ter reconhecimento no Famashow, que não tendes tomates para dizer na cara das pseudo-estrelas que pontilham o vosso pequeno mundo cinematográfico que nenhuma delas sabe actuar? Não vos preocupeis, mandai-as a mim, que eu di-lo-ei por vós.

Segundo, estará o vosso processo produtivo tão corrompido que não possuís meios de dar o texto aos actores antes das filmagens? Novos e velhos, ‘experientes’ (muitas aspas) e inexperientes, todos eles parecem estar a ler os textos pela primeira vez nos cartõezinhos fora de cena, tão articulados tentam ser e tal é a dificuldade que aparentam ter em falar de uma forma fluída e natural. Serão os silêncios constantes, principalmente entre falas, fruto da vossa infelicidade financeira? Não possuis vós um teleponto, tendo tido que contratar um desgraçado barrigudo barbudo para o efeito? Terá este barrigudo barbudo de, sempre que se muda de personagem, pousar o cartão que está a segurar, agachar-se, e levantar o seguinte, originando assim a pausa que se vê no ecrã?

Terceiro, há algum problema de rigidez respeitante aos vossos actores? Certamente não lhes haveis espetado qualquer coisa (uma vassoura?!) traseiro acima antes das gravações? Assegurem-me que não por favor! Ou terão todos eles, sem excepção, sofrido um acidente de ski antes das filmagens, que os impeça de fazer movimentos de coluna? Talvez me respondeis falando-me em marcações de cena. Mas a não ser que me digam que caiu um jarro de super-cola 3, que a meio do voo se misturou com uma Tridente (já mastigada), no preciso local onde o actor devia estar, e que este não se conseguiu descolar como consequência, então não acredito que alguém possa ser tão ou mais preso de movimentos que a múmia do Boris Karloff.

Quarto, quando tendes actores que estão ombro a ombro, mas a falar um com o outro, estareis por acaso a fazer pouco dos estrábicos? Quando a meio de uma conversa ambas as personagens ficam imóveis, antes de prosseguirem, estareis a fazer pouco dos epilépticos, e das suas ausências? Ou estareis vós, com a música de fundo e os close-ups nos variados silêncios, a fazer uma grande homenagem ao Sergio Leone e o ignorante sou eu? Quando mostrais crianças de 7 anos a dizer frases com a complexidade gramatical de uma pessoa de 40, estareis a fazer pouco das crianças sobredotadas? Quando 90% das saídas de cena são feitas com as palavras (já no novo acordo ortográfico) ‘bora, bora’, estareis vós a fazer publicidade ao destino turístico da Polinésia Francesa?
 
Quinto, onde encontrais os vossos argumentistas? Estareis vós a ser solidários com um senhor (ou senhora) que tenha estado fechado num abrigo nuclear na Sibéria nos últimos 30 anos e desconheça como se fala no Mundo normal? Estareis vós a ser solidários com um pobre empregado fabril que após 50 anos de labuta a fazer fivelas de sapatos subitamente ficou desempregado e, infeliz, com a quarta classe, aceitou o emprego que vós lhe propusestes, mesmo não sabendo compor uma frase? Estareis vós a empregar a flor fina da nova geração de escritores portugueses, que sabem usar as palavras do dicionário, mas que se esquecem, preocupados como estão com o dicionário, que há uma diferença muito grande entre a composição frásica da linguagem escrita e a composição frásica da linguagem falada? Estareis vós tão embrenhados na busca de um estilo visual de realização tão absolutamente magnífico (que, lamento desapontá-los, não atingem), que não se conseguem aperceber o quão falso soa cada uma e todas as frases das vossas produções?

Sexto, sabeis vós como se processa uma conversa normal entre duas pessoas? Sois vós autistas? Já alguma vez haveis tentado mudar de plano enquanto uma personagem ainda esta a falar para dar um sentido de continuidade? Sabeis vós que há programas de edição, que se podem descarregar da internet sem qualquer custo, que permitem colocar o som de um plano sobre a imagem de um outro? Haveis alguma vez experimentado filmar a pessoa B enquanto a A ainda está a falar, e fazer a pessoa B responder mal a A chega ao fim da sua frase, ou está na última palavra, evitando assim pausas morosas, e reproduzindo a vida real? Já alguma vez haveis experimentado editar uma sequência de uma pessoa a entrar num carro, mostrando-a apenas a colocar a mão na porta e cortando para ela a instalar-se dentro do veículo, saltando assim os planos de abrir a porta, meter uma perna, meter a outra perna, esticar o braço e fechar a porta, poupando tempo e dando fluidez à cena, visto que o público faz a ponte mentalmente? Ou achais vós que o público sofre de insónias e que tendes que mostrar tudo, fazendo com que ele adormeça antes de o carro arrancar?

Sétimo, quando estais na sala de projecção a ver as rushes, que achais de vós próprios? Que achais do público? Achais que nós somos uma cambada de ignorantes sem vontade própria e que aguenta com tudo o que vós quereis espetar-nos pela goela abaixo? Achais que gostamos de ver múmias paralíticas a pavonearem-se de marcação em marcação a debitar frases lidas no teleponto na deixa certa mas com a entoação errada? Achais que gostamos de silêncios para podermos compreender bem o argumento menos complexo que uma história do Winnie the Pooh, mas com muito mais sexo? Achais, muito sinceramente, que o vosso produto tem qualidade? Que é produção nacional com categoria? Que é bom entretenimento? Ou sois vós apenas um conjunto de criancinhas, todas amiguinhas umas das outras, e com vontade de arranjar brincadeiras umas às outras com o dinheirinho do papá? Achais vós por bem usar o meu dinheiro, como contribuinte, para me encher a televisão de miséria, da qual não se tem nojo, apenas pena; pena da tristeza completa que são actores, argumentistas e realizadores, pena de nenhum deles se aperceber (pelo menos publicamente), da mixórdia que está a fazer, só porque as galas, as revistas e os paparazzi não os largam?

Por fim, e mais importante que tudo, achais por bem dar à vossa personagem principal do ‘Pai à Força’ o nome de Miguel Saraiva? Eu asseguro-vos que posso digerir toda a má representação. Posso aguentar os medíocres argumentos. Posso suportar a total incapacidade que os intervenientes têm em compreender o quão idiotas estão a ser. Complicado, dizeis vós? É simples, digo eu. Só preciso de mudar de canal. Mas o que não posso digerir/suportar/aguentar é que manchem a minha reputação, por mais remotamente que seja. Como as coisas estão, posso ter a infelicidade e/ou o infortúnio de alguém me confundir com uma das vossas criações. Miguel Saraiva só pode haver um. E, sinceramente, e com todo o devido respeito que é devido, que seja o melhor dos dois.

Os melhores cumprimentos

Miguel Saraiva,

 (humilde espectador televisivo português)

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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