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The Bishop's Wife

Ano: 1947

Realizador: Henry Koster

Actores principais: Cary Grant, Loretta Young, David Niven

Duração: 109 minutos

Crítica: Depois da segunda-guerra mundial ter acabado, o cinema americano viu-se tentado a oferecer filmes inspiracionais sobre a fraternidade universal e a boa vontade dos homens. Não é que estes filmes já não tivessem sido feitos anteriormente. Entre 1939 e 1945 muitos filmes deste género foram feitos, mas a mensagem era bem clara: ataque ao nazismo e moralização dos americanos. Depois de 1945 este tipo de filmes tornaram-se menos focados e mais universais. Um dos mais icónicos, o clássico de Natal de Frank Capra, ‘It’s a Wonderful Life’ apareceu logo em 1946, mas talvez tenha aparecido um bocadinho cedo de mais, ou seja, muito em cima do final da guerra. ‘It’s a Wonderful Life’, o filme bem-amado que é hoje, foi criticado na altura do seu lançamento pela sua mensagem idílica e não foi um grande sucesso de bilheteira. Mas a sua magia era incontestável e parece óbvio que lançou as sementes para filmes natalícios subsequentes, todos imbuídos de um toque de magia especial, como por exemplo ‘Miracle on 34th Street’ de 1947.

Por outro lado, por qualquer motivo, esta temática do anjo, ou do fantasma, que aparece para mudar as vidas de um conjunto de personagens, estava a ter alguma expressão no cinema anglo-saxónico, talvez pela necessidade de ter fé em algo transcendental num mundo que estava dilacerado pela pior guerra da história da humanidade. David Lean tinha brincado com a temática em ‘Blithe Spirit’ (1945), e 1947 viu também o soberbo ‘The Ghost and Mrs. Muir’ de Joseph L. Mankiewicz, em que Rex Harrisson é um fantasma que “assombra” a delicada Gene Tierney. Mas 1947 viu também outro filme em que um anjo vem à Terra na altura de Natal, para inspirar um conjunto de pessoas que perderam a sua fé: ‘The Bishop’s Wife’ de Henry Koster (em português: ‘O Mensageiro do Céu’). Koster não tem um filme hoje grandemente reconhecido antes de ‘Bishop’s Wife’, mas dentro em breve faria o maravilhoso ‘Harvey’ (1950) com Jimmy Stewart e faria igualmente história com ‘The Robe’ em 1953, o primeiro filme num rácio alargado.

Para mim, até ontem, ‘The Bishop’s Wife’ era apenas uma entrada das filmografias de Cary Grant, David Niven e do realizador Henry Koster. Sabia que Cary Grant fazia de anjo (e achava estranho tal facto), e pouco mais. Este fim-de-semana, por ocasião do meu aniversário, ofereceram-me o novo blu-ray deste filme. Ontem vi-o. Nem sequer sabia que o filme se passava na época de Natal. Portanto foi uma dupla bem-vinda surpresa. Não só é o filme surpreendentemente bom, isto é, no contexto de filmes de época natalícia, como tem uma incrível performance de Cary Grant (mais uma, ver a minha crítica de ‘Mr. Lucky’, 1943). Nunca vi ‘The Bishop’s Wife’ numa lista de filmes de Natal. Nem sequer o incluí na minha. Mas merecia lá estar. Em todas elas. Pode ser uma versão mais caseira de ‘It’s a Wonderful Life’ feito um ano antes (aliás alguns dos actores secundários são os mesmos e alguns dos enquadramentos têm suspeitos paralelismos) mas isso não lhe retira a sua magia natalícia.

No início do filme assistimos ao enquadramento de uma pequena cidade. Faltam poucos dias para o Natal e as pessoas estão na rua a fazer compras, as crianças brincam com bolas de neve, vendem-se árvores de Natal. De repente, algo destoa neste enquadramento. É Cary Grant. Como um anjo enviado à Terra, Grant está como nunca se viu. O seu sorriso cativante é o mesmo, mas não está envolto nem de sarcasmo, nem de espanto, nem de uma ligeira insanidade matreira, como nas suas mais famosas comédias screwball. Grant está plácido e sereno, com um sorriso de bondade infinita e enorme compreensão, e a irradiar uma gigantesca alegria. Há uma aura que o envolve, que obviamente é exacerbada pela música etérea que acompanha a sua presença e pelo inteligente uso de iluminação, mas é mais que isso. É uma aura que parte do próprio Grant. Tal como acreditamos perfeitamente quando Steve Spielberg escolheu Audrey Hepburn para fazer de anjo em ‘Always’ (1989), tristemente o último filme desta princesa de Hollywood, Grant tem essa mesma presença incrível e apaziguadora. Temos que agradecer a Koster por isso. Inicialmente Grant e David Niven tinham os papéis trocados e filmaram assim durante largas semanas. Mas quando o realizador inicial, William A. Seiter, foi despedido e Koster o substituiu, viu que o filme funcionaria muito melhor com Grant como anjo e Niven como o Bispo. Foi uma decisão inspirada, a melhor que poderia ser feita.

Neste início, o anjo de Grant, chamado Dudley, interage com uma série de personagens, como o velho professor resingão mas de bom coração Wutheridge (interpretado pelo sempre fabuloso Monty Woolley) e principalmente Julia, a mulher do Bispo que dá o título ao filme, interpretada por Loretta Young (que curiosamente ganhou o Óscar de Melhor Actriz nesse mesmo ano, mas por 'The Farmer's Daughter'), depois da escolha original para o papel, Teresa Wright, ter ficado grávida. E eventualmente Dudley acaba por aparecer na sala de estar do Bispo, interpretado de uma forma algo desinspirada por David Niven. Niven é um actor soberbo, portanto não me parece que o problema venha daí. Creio que a troca de papéis fez muito melhor a Grant do que a Niven, e o filme mudou completamente o seu foco. Até o título, no contexto final do filme, parece não fazer muito sentido, já que o anjo é mais importante até que a mulher do Bispo, e é tudo mostrado da sua perspectiva.

O Bispo de Niven era um homem devotado à família e à comunidade. Mas desde que concebeu a ideia de criar uma nova Catederal na cidade, para honrar Deus, deixou-se levar por essa sua obsessão, esquecendo-se da velha igreja e os párocos, negligenciando a sua mulher e a filha, para passar o dia a trabalhar e a bajular as viúvas ricas da cidade que lhe poderão financiar o projecto. Uma delas, Mrs. Hamilton (interpretada por Gladys Cooper) está disposta a dar o dinheiro, mas desde que a Catederal seja, não para a comunidade, mas um monumento ao seu falecido marido. O Bispo perdeu o Norte e parece já nem saber porque quis construir a Catederal em primeiro lugar.

É aqui que entra em cena o anjo Dudley. Aparece para responder às preces do Bispo. Só que o Bispo acha que rezou para que a sua Catederal seja construída, e Dudley insinua desde o início que sabe que no íntimo o Bispo quer é outra coisa. Então oferece-se como assistente do Bispo, para que o Bispo possa ter tempo para fazer as coisas que realmente são importantes. Mas sempre que Dudley se oferece para trabalhar ou ir uma reunião, o Bispo, ainda céptico e não acreditando bem que Dudley seja um anjo, recusa sempre. Então Dudley, com o seu charme, espalhando alegria e inspirando todos aqueles com quem interage, substitui o Bispo em todas as coisas que este negligencia; na companhia da mulher, nas brincadeiras com a filha, no apoio aos membros da comunidade. Praticamente toda a comunidade menos o Bispo se sente tocada por Dudley, e aquele começa a ficar invejoso, principalmente da relação entre Dudley e a sua mulher…

‘The Bishop’s Wife’ não se afasta muito desta linha central. Cary Grant, o anjo, espalha alegria, pois sabe o nome de toda a gente, trata todos com simpatia, e inspira as pessoas a seguirem os seus sonhos, mesmo que sejam sonhos que há muito estavam enterrados. Por um lado esta é uma mensagem nobre e é engraçado, embora previsível e por vezes artificial, ver cada personagem a sentir-se tocada e inspirada à vez, dando novo rumo à sua vida. Por outro, o filme perde tempos infinitos com estas tramas secundárias e com momentos de ‘alegria’. A cena em que Dudley leva Julia a patinar no gelo, por exemplo, demora 10 minutos. Recorrendo a óbvios duplos, ambos dançam e dançam e dançam, divertindo-se, sem consequências extras para a história do que não teria uma cena de 2 minutos. Chega a ser também bastante esquisita a relação entre Dudley e Julia. Há mais do que uma altura em que parece que vão dar um beijo, e em várias ocasiões Julia parece estar completamente pelo beicinho por Dudley, que também parece tentado em mais do que uma vez a esquecer a sua missão e dedicar-se exclusivamente à mulher do Bispo…

Mas quem é divino e vem do céu obviamente vai manter a serenidade e saber sempre qual é o caminho certo. É quase patético como esta química entre Dudley e Julia se dissolve e o resto são truques demasiado fáceis para resolver as questões pendentes do filme. Não temos dúvidas que o Bispo vai encontrar o seu norte, reencontrar o seu caminho para a família e a comunidade, e até a viúva rica que manipula o Bispo (uma espécie de versão soft de um Mr. Potter de ‘It’s a Wonderful Life’) se irá redimir da sua ‘maldade’. As outras personagens secundárias que vão cruzando o caminho de Dudley chegam à felicidade de uma forma ainda mais fácil.

‘The Bishop’s Wife’ pode ser um filme muito inspirado na fórmula de ‘It’s a Wonderful Life’, e pode ser infantil na sua concepção e com um desfecho bastante previsível. Perde-se bastante em tramas secundárias, é certo, e há coisas que não batem muito certo na relação emocional entre as personagens. Por exemplo, o anjo foi supostamente enviado para ajudar o Bispo, mas ajuda directamente toda a gente menos o Bispo com o seu toque especial, e o Bispo é deixado a chegar à redenção (quase) sozinho, aprendendo a mal o que todas as outras personagens aprenderam a bem. Outro exemplo é a quase futilidade da personagem de Julia, que salta de mulher negligenciada para uma mulher que se diverte (bem de mais até) com outro homem, para de novo a mulher devotada do Bispo no final 'tudo está bem quando acaba bem'.

Mas apesar de todas estas coisas, não é isso que nos fica na memória quando acabamos de ver ‘The Bishop’s Wife’. Recordamos o sorriso de Cary Grant, recordamos a sua forte presença, recordamos a alegria que as personagens obtêm das coisas simples: uma cantiga de Natal, uma luta de bolas de neve, a compra de uma peça de roupa nova só porque é Natal, uma dança no gelo, uma palavra amiga. Por tudo isso, porque é um filme que invoca esse espírito, mesmo que a história não seja a coisa mais bem desenvolvida do mundo e o seu ritmo seja muitas vezes quebrado, só tenho que afirmar que este é um glorioso filme de Natal, digno de fazer parte de qualquer grelha televisiva nos dias 24 ou 25 de Dezembro. A fotografia e a iluminação são soberbas, melhores do que realmente a realização, a banda sonora de Hugo Friedhofer mais que adequada à época festiva, e o filme vai tirando uns coelhos da cartola, como umas pontadas cómicas bastante interessantes (veja-se a cena em que Dudley ‘impede’ o Bispo de se levantar da cadeira) e uma moral não é, nem de perto nem de longe, banal ou cheia de clichés. A simplicidade do filme contribui para a sua universalidade, tal como todos os grandes filmes de Natal por esse cinema fora, de ‘Miracle on 34th Street’ a ‘Home Alone’. Numa época festiva como esta, somos mais receptivos a filmes que nos inspiram, por muito lamechas que isso possa ser. Mas ‘The Bishop’s Wife’ não é lamechas. É tão sereno como a personagem de Grant, e a sua capacidade de inspiração é tão forte quanto Dudley inspira fortemente todos em quem toca. ‘The Bishop’s Wife’ também nos toca, se tivermos a sorte de o ver, como eu o vi, pela época de Natal, e isso é que é importante num filme deste género.

Em 1947, ‘The Bishop’s Wife’ foi um dos cinco nomeados para o Óscar de Melhor Filme, tal como o outro grande filme de Natal do ano, ‘Miracle on 34th Street’. Acho que ter ganho seria algo rebuscado, mas num ano com estas duas entradas, mais ‘Crossfire’, o noir de Edward Dmytryk, e ‘Great Expectations’ de David Lean, ter ganho ‘Gentleman's Agreement’ é mais uma daquelas decisões da Academia em prol dos “filmes sociais” que com distanciamento nunca fazem muito sentido. O filme teve mais três nomeações sem Óscar, para melhor realizador (a única na carreira de Koster), melhor montagem e melhor banda sonora. Mas só obteve o galardão para melhor som. E mais uma vez o Grant foi negligenciado, tal como em toda a sua carreira, pela Academia. Nem a nomeação lhe deram.

Nesta época de Natal, numa altura em que revejo muitos filmes de estatuto natalício (ainda este fim de semana revi os ‘Home Alones’), estou feliz por ter encontrado mais um filme que posso ver em família e que me pode embalar nesta quadra. ‘The Bishop’s Wife’ pode ser um filme não muito memorável na história de cinema, mas é uma entrada mais que obrigatória na melhor quadra do ano.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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