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Charade

Ano: 1963

Realizador: Stanley Donen

Actores principais: Cary Grant, Audrey Hepburn, Walter Matthau

Duração: 113 min

Crítica: ‘Charade’ (em português ‘Charada’) é por vezes apelidado de "o melhor filme de Hitchcock que não foi realizador por Hitchcock". Em verdade, creio que ‘Charade’ é demasiado leve para poder ser um filme de Hitchcock, mas mesmo assim é uma excitante mistura dos géneros de acção, espionagem e mistério tão em voga no cinema da guerra fria dos anos 1960, aliada ao enorme charme das comédias românticas, que torna o seu apelo gigantesco, universal, que ainda hoje, 50 anos volvidos, não esmoreceu. O filme ainda resulta no século XXI (provavelmente) tão bem quanto resultou na altura do seu lançamento em 1963 e isso é a marca de um grande clássico. E se isso não for suficiente, só o par de actores principais, na sua única aparição cinematográfica em conjunto, já vale o preço do bilhete, ou como quem diz do DVD ou do Blu-ray, ou o esforço para o leitor o (re)descobrir por outras vias. Estou a referir-me ao supremo Cary Grant e à delicada Audrey Hepburn.

Este é o antepenúltimo filme da carreira de Cary Grant que terminaria, por vontade própria, em 1966 (viveria ainda mais 20 anos longe dos ecrãs). ‘Charade’ é para mim, a par de ‘North by Northwest’ (1959) de Hitchcock, a sua última grande obra. Tirando estes dois filmes, as últimas obras da sua carreira foram comédias românticas já longe do seu tempo devido, ou dramas românticos maduros, mas que nunca se decidiam entre explorar o seu drama ou explorar a imagem de Grant como o irresistível galã por excelência. O grande responsável por essa exploração é o próprio Stanley Donen, o realizador de ‘Charade’, filme que marcou a sua quarta e última colaboração em seis anos com Cary Grant.

Donen, o realizador que começara a fazer musicais com Gene Kelly, ‘On the Town’ (1949) e ‘Singin' in the Rain’ (1952), e outros como ‘Seven Brides for Seven Brothers’ (1954), que já critiquei, trabalhou com Grant pela primeira vez em ‘Kiss Them for Me’ (1957). Seguiram-se ‘Indiscreet’ (1958) e ‘The Grass Is Greener’ (1960). Os três são bastante inconstantes em termos de tom, os três tentam recapturar o espírito do comédia romântica dos anos 1940 ao mesmo tempo que procuram introduzir temáticas contemporâneas; os traumas de guerra em ‘Kiss Them for Me’, o romance da meia-idade em ‘Indiscreet’ (Ingrid Bergman maravilhosa), e o adultério em ‘The Grass Is Greener’. Os filmes oscilam demasiado entre géneros e no fim a vertente mais leve ganha sempre, enquanto as partes mais ‘pesadas’ são esquecidas, como se o filme nunca as tivesse tido.

Todas estas obras ajudaram a cimentar a imagem do galã charmoso de meia-idade que Grant tanto desgostava e que o impedia de ter papéis em filmes de outra natureza. Foi precisamente por achar que esta sua imagem, estes papéis que lhe ofereciam, já não se adequavam aos seus anos avançados, que Grant se fartou do cinema, e decidiu envelhecer longe da tela. Do mesmo modo, foi por isso que inicialmente recusou o papel principal em ‘Charade’ – mais uma vez seria emparelhado com uma mulher 25 anos mais nova, que seduziria (a fabulosa Audrey Hepburn no seu pico, entre ‘Breakfast at Tiffany's’, 1961, e ‘My Fair Lady’, 1964, e que havia trabalhado com Donen em ‘Funny Face’, 1957), num filme que de novo misturava comédia romântica com outro género.

Mas duas decisões fazem toda a diferença, e tornam ‘Charade’ não só no melhor filme de Donen na sua era Cary Grant, como o último grande filme deste fabuloso actor. Primeiro, para tentar convencer Grant a aceitar o papel, o argumentista Peter Stone fez a melhor escolha que poderia ter feito. Trocou muitos dos diálogos frescos e dinâmicos de ‘sedução’, reminiscentes da era clássica de Hollywood mas com a abertura sexual que os tempos já permitiam, entre a personagem de Grant e a de Hepburn. Ou seja, Hepburn tornou-se na personagem que se ‘insinua’ a Grant, o homem mais velho, e não vice-versa como originalmente planeado. E segundo, a comédia romântica está misturada, não com o drama, não com qualquer tema social em voga, mas sim com o mistério e a espionagem. Estes eram os anos dos primeiros filmes de James Bond, dos primeiros épicos da guerra fria, dos primeiros filmes que começaram a olhar para o que teria acontecido aos tesouros e aos vilões que desapareceram durante a Segunda Guerra Mundial. E todos estes elementos estão maravilhosamente entrosados em ‘Charade’.

A primeira sequência é noir puro. Um comboio na noite. Um homem é lançado borda fora e o seu corpo sem vida rebola pela encosta abaixo. Close up da sua cara distorcida, sem vida. Uma espécie de grito, o som do comboio misturado com a primeira nota do genérico. Aí entra o genérico vibrante com banda sonora de Henry Mancini e o maravilhoso design gráfico de Maurice Binder, o guru dos genéricos de James Bond (aliás, os produtores de Bond contrataram Binder em 1962 para ‘Dr. No’ por causa do seu genérico para ‘The Grass is Greener’…). 

Findo o genérico estamos nos Alpes Suiços. Somos introduzidos à deliciosa Audrey Hepburn, interpretando Regina Lampert, que está de férias com a sua melhor amiga e o filho desta. A sua personagem é maravilhosa, ou melhor, ela torna-a maravilhosa com o seu toque de Midas. No seu estilo próprio, Regina confessa à amiga que vai pedir o divórcio ao marido, Charles, quando voltar a Paris, e não tem pudor nenhum em fazer um ligeiro ‘flirt’ com outro homem que também está na estância de ski, Peter (quem mais, Cary Grant). Regressada a Paris, Regina entra no seu apartamento para o descobrir totalmente vazio, e o seu marido desaparecido. A polícia informa-a que foi o seu marido precisamente o homem que morreu no comboio. Charles pretendia apanhar um barco para a América do Sul e teria com ele, supostamente, um quarto de milhão de dólares, o valor de todos os seus bens que tinha vendido. Mas esse dinheiro não foi encontrado na sua posse. Todos ficam a achar que ele deu o dinheiro a Regina, ou que o enviou a ela, ou que o escondeu em qualquer coisa dela sem ela saber.

Regina fica atónita e desgostosa, mais pela perda das posses do que propriamente do marido. Aliás, este seu casamento é das poucas coisas incredíveis no filme. Ela não sabe nada sobre o marido. Não sabe quem era e o que fazia, nem onde tinha arranjado a fortuna. E tudo o que o filme nos diz sobre Regina antes de casar é que ela era tradutora numa espécie de ONU em Paris. Não nos conta como conheceu Charles, o que viu nele para se apaixonar, há quanto tempo estavam casados e como viviam. O filme considera isto irrelevante mas a verdade é que tira um pouco de consistência a esta personagem, que de repente se vê numa situação que não consegue compreender. Felizmente, o carisma e o charme da própria Hepburn é suficiente para nos esquecermos rapidamente disso. Como um espírito livre, está pronta para recomeçar, embora não saiba bem como. Mas o problema adensa-se quando três homens ameaçadores (optimamente interpretados por James Coburn, Geoge Kennedy e Ned Glass) aparecem no funeral e começam a pressionar Regina. Ela tem que lhes dar o dinheiro, senão…

Depois Regina recebe a chamada de um agente da CIA (mais uma performance de mestre do filme, desta vez de Walter Matthau) que lhe conta a história. Durante a Segunda Guerra Mundial, um pelotão de 5 homens roubou precisamente um quarto de milhão de dólares aos Nazis e escondeu-o, para regressar mais tarde depois da Guerra. Esses cinco homens eram o marido dela, Charles, os três homens ameaçadores no funeral e um outro que ainda não sabemos quem é, que supostamente terá morrido: Carson Dyle. Charles traiu os companheiros e ficou com o dinheiro para si, mas os outros descobriram-lhe o paradeiro e mataram-no. Agora todos reclamam o dinheiro e pensam que Regina é quem o tem… Sem saber para onde se virar, Regina pede auxílio ao Peter de Cary Grant, que inicialmente parece a sua personagem de ‘Notorious’ (1946) de Hitchcock, mas depois começa a ficar mais dúbio. Será ele o misterioso Carson Dyle? Também estará atrás do dinheiro? À medida que o filme avança nada é o que parece, há vários twists quer de histórias quer de personagens, a pilha de corpos aumenta e o número de suspeitos diminui. Como não podia deixar de ser, e não obstante o previsível final feliz, só mesmo no desfecho sabemos quem está por detrás dos assassinatos e onde está, realmente, o dinheiro escondido.

Ontem vi ‘Charade’ talvez pela quinta ou sexta vez. É daqueles filmes que adorava ver na adolescência pois tem todos os elementos sedutores: aventura, mistério, romance, espionagem, e elementos ao estilo Agatha Christie como ‘quem é o assassino’ e ‘onde está o dinheiro’. São sem dúvida estes elementos que cativam o espectador numa primeira visualização e o prendem à tela (a sequência onde se descobre onde está o dinheiro é magnífica, tal como o showdown final). Claro que na segunda vez que vemos o filme isso já deixa de ser surpresa, por isso poder-se-á pensar que o filme perde o interesse. Nada disso. Se assim fosse, apenas veríamos filmes como ‘Murder on the Orient Express’ (1974) ou ‘The Usual Suspects’ (1995) uma única vez. Contudo, vemo-los duas, cinco, dez vezes e não nos fartamos. Porquê? Porque tal como um bom romance policial, têm outras valências muito além da mera identidade do assassino. E em termos dessas valências, ‘Charade’ está no topo da lista.

O elemento mais cativante é a química entre Grant e Hepburn. Grant está mais velho, mais pesado, mas não perdeu nenhuma da sua chama, nem a dualidade que Hitchcock tão bem soube explorar. Aqui, como raramente no final da sua carreira, essa dualidade regressa e até literalmente ao último plano do filme não sabemos exactamente quem ele é nem o seu papel no meio desta intriga. À primeira vista parece difícil imaginar Hepburn a apaixonar-se e a ‘fazer-se’ a Grant tão abertamente (mais um elemento pouco credível da sua personagem), mas à medida que o filme se desenrola ela convence-nos com a sua energia e também ela tem uma dualidade que é fascinante. Em ponto algum ela é uma vítima e uma dama indefesa, e tem sempre uma resposta na ponta da língua. Os diálogos entre ambos são explosivos e carregados de faíscas e sedução, e quer um quer outro manobram o público como mestres por entre a tensão, o mistério e os escapes cómicos (Audrey Hepburn de gabardina e óculos escuros a ‘espiar’ é absolutamente brutal!). 

Depois as interpretações secundárias são todas de primeira água, destacando-se a de Coburn e a de Mathau. O filme está brilhantemente filmado em famosas localizações em Paris (Hepburn ficou por lá para filmar logo de seguida ‘Paris - When It Sizzles’, 1964), algo que para quem viu filmes contemporâneos de Grant com backgounds totalmente artificiais, pouco disfarçados, (‘Houseboat’, 1958, por exemplo) é um enorme alívio. E crédito tem de ser dado também ao ritmo e à montagem do filme, que não deixam o espectador tomar ar num único segundo. A única coisa que se pode apontar, realmente, é o filme ser sempre demasiado leve. Não há, praticamente, uma sensação de medo, ou que as personagens estão verdadeiramente em perigo. Não há a exploração emocional que teria um thriller de Hitchcock. Quem pode levar a sério uma cena intensa em que Kennedy tenta matar Grant quando logo depois Grant está na galhofa com Hepburn e toma duche completamente vestido?!

‘Charade’ é como o seu casal principal: tem charme, carisma e elegância. E isso enriquece a sua comédia e o seu romance, que pela sua força, irreverência e química não parece fora de tempo (ao contrário dos filmes contemporâneos de Grant e de Donen), e enriquece a sua história, que se desenrola como o melhor dos policiais, extremamente bem construída e sempre carregada de pontos de interesse a cada esquina. Até ao final ficamos agarrados para saber onde está o dinheiro. Até ao final as nossas suspeitas vão saltando continuamente de uma para outra personagem. Até ao final ansiamos ardentemente por mais uma cena a dois entre Grant e Hepburn, por mais um pouco da magia que juntos conseguem proporcionar. As misturas de género que Donen andava a fazer há uma década finalmente dão fruto aqui da melhor maneira possível; um produto talvez familiar, mas que consegue apelar com sucesso aos fãs da espionagem, aos fãs dos whodunits, aos fãs da comédia romântica, aos fãs de Grant e aos fãs de Hepburn.

Quando o filme termina sentimos uma enorme pena pelo seu cinema não se ter cruzado mais vezes. Podia ter acontecido no ano seguinte, mas os seus interesses estavam trocados. Grant recusou o papel de Higgins em ‘My Fair Lady’ por achar que não iria conseguir cantar, antes de Hepburn ser contratada. Mas quando a tentou convencer a entrar com ele em ‘Father Goose’ (1964 – filme pelo qual o mesmo argumentista de ‘Charade’ ganhou um Óscar de Argumento), Hepburn já estava comprometida com ‘My Fair Lady’! Uma gigantesca tragédia para a sétima arte!

Grant terminaria a sua carreira em 1966 e Hepburn apenas faria também mais um punhado de filmes (incluindo ‘Two for the Road’ realizado por Donen), até se semi-retirar em 1967 (depois desse ano apenas faria mais 5 filmes até à sua morte em 1993). Já Donen tentou repetir a fórmula de ‘Charade’ no seu filme seguinte, ‘Arabesque’ (1966), com Gregory Peck e Sophia Loren, mas na minha opinião sem grande sucesso. Falta-lhe química e chama. Falta-lhe uma história que apesar de voltas e reviravoltas, consiga manter sempre o espectador agarrado à cadeira. E principalmente falta-lhe a inimitável magia que Grant e Hepburn conseguem gerar em conjunto.

‘Charade’ é um fantástico produto de romance e espionagem dos anos 1960. É talvez aquele que melhor balanceia os géneros e o senão desse sucesso é perder a intensidade. Mas isso torna-o num produto de apelo universal, que faz a ponte de uma forma perfeita entre o glamour da Hollywood clássica e o cinema mais intenso que surgia por esta altura. ‘Charade’ é essa ponte, e sobre ela o cinema americano passou, dizendo adeus a uma era e abraçando outra; o cinema da guerra fria, da abertura sexual, do alienismo dos anos 1970. ‘Charade’ é a charneira, e o resultado é vibrante mas também, se virmos o filme hoje com atenção, nostálgico. A história não envelheceu um único dia, a energia não se dissipou com as décadas, o que é fabuloso. Mas é impossível ver Cary Grant e Audrey Hepburn a fazer faísca juntos num filme sem sentirmos tristemente que há glórias que o cinema nunca voltará a ter. Ainda bem que há filmes como ‘Charade’ e DVDs na estante que nunca nos fazem esquecer isso e que podemos revisitar a nosso bel-prazer, pela vida fora.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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