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Boyhood

Ano: 2014

Realizador: Richard Linklater

Actores principais: Ellar Coltrane, Patricia Arquette, Ethan Hawke

Duração: 165 min

Crítica: O realizador Richard Linklater já fez muitos tipos de filmes, dos mais comerciais (‘School of Rock’, 2003), às comédias negras (‘Bernie’, 2011) e até aos filmes de gangsters ‘(Newton Boys’, 1998). Mas sempre esteve melhor quando se debruçou sobre a própria vida, sobre a forma como as pessoas crescem e evoluem ao longo dos anos, e como vão gerindo as suas emoções e as suas relações, à medida que a vida vai fluindo à sua volta. Abordou-o de uma forma mais filosófica no fantástico filme de animação ‘Waking Life’ (2001), mas foi com a sua trilogia ‘Before’ (que de certeza não se quedará por três filmes), que Linklater atingiu esse estado mais perfeito de comunhão entre o amor, a vida e a arte cinematográfica. Com ‘Before Sunset’ (1995), Before Sunrise’ (2004) e ‘Before Midnight’ (2013), Linklater foi visitando o seu casal fictício constituído por Ethan Hawk e Julie Delpy de 10 em 10 anos, e estes evoluíram, como se de pessoas verdadeiras se tratassem, tal como o realizador (agora na casa dos 50 anos) e os actores (agora na casa dos 40) evoluíram. Como escrevi na crítica do ano passado ao filme ‘Before Midnight’:

Se no primeiro filme as personagens estavam na casa dos 20 e portanto tinham conversas de uma vida por descobrir e de um amor por encontrar, e no segundo filme estavam na casa dos 30, a começar a assumir responsabilidades e a ponderar em assentar, agora, na casa dos 40 anos, e com duas filhas, as personagens, e inevitavelmente as conversas, são diferente.

Só muito raramente vimos isto no cinema. Satyajit Ray descreveu-nos o seu Apu ao longo de 3 filmes, mas três actores diferentes interpretaram-no nas várias fases da vida. Truffaut fê-lo ao longo de vinte anos com o mesmo actor, Jean-Pierre Léaud, nos cinco filmes da quintologia de Doinel. Mas mesmo esta odisseia de Truffaut, apesar de soberba e de contar uma vida, não deixa de ser, no seu mais básico, semelhante em conceito à proverbial sequela em que os mesmos actores regressam para um novo filme. O mesmo acaba por acontecer na trilogia 'Before' de Linklater. Da mesma forma, no universo dos documentários, o realizador inglês Michael Apted faz um novo capítulo do seu documentário ‘Up’ de 7 em 7 anos, seguindo os destinos de um conjunto de famílias reais. Mas o que Linklater fez em ‘Boyhood’, que eu saiba, nunca foi feito.

Basicamente, o projecto de ‘Boyhood’ começou há 12 anos. Linklater tinha acabado de fazer ‘Waking Life’ e estava prestes a começar ‘School of Rock’. Então filmou as primeiras cenas de ‘Boyhood’. A partir daí, actores e equipa técnica reencontraram-se anualmente para filmar um par de cenas. O resultado é a evolução de um conjunto de personagens ao longo de 12 anos, estando no epicentro o jovem Mason (o actor Ellar Coltrane), que o filme retrata desde os seus 6 anos até aos 18 anos de idade. Não há cá maquilhagens, efeitos especiais ou truques de fotografia. Realizador e actores cresceram 12 anos, e o filme cresceu com eles, adaptando-se aos tempos. Claramente, o argumento não foi escrito todo há 12 anos. As linhas gerais provavelmente sim. Mas não os pormenores subtis do crescimento. Nota-se isso pelas constantes referências contemporâneas, desde a eleição de Obama ao surgimento de Lady Gaga. Pois crescer é também absorver o Mundo à volta, e desta forma, Linklater fez uma verdadeira peça de ‘cinema verité’; um filme fictício mas que afecta o espectador de tão real que é, principalmente o sentirmos as pessoas por detrás das personagens a crescer (e não estou só a falar do aspecto físico), que nenhum departamento de maquilhagem, nem nenhum actor incrivelmente versado poderia conseguir reproduzir. Pois mesmo que a Meryl Streep faça de velhota de 90 anos, apenas poderá fingir essa sensação, por mais espectacularmente que a finja. Ellar Coltrane tinha realmente 10 anos quando filmou as cenas em que a sua personagem tinha 10 anos. E esperou até ter 18 anos para filmar as cenas em que a sua personagem tinha 18. Fingir uma idade que não tinha seria incrivelmente exigente para um jovem actor. Assim está praticamente a filmar a sua própria vida, a reproduzir na tela as suas próprias emoções e incertezas de crescimento. O miúdo evoluiu, teve experiências de vida, e foi sempre contemporâneo da personagem que estava a retratar. Ele cresceu com a sua personagem, e todo o seu crescimento real se reverteu nela. 

Isto, em conceito, é absolutamente brilhante, e é por isso que desde que o lançamento de ‘Boyhood’ foi finalmente anunciado para este ano, o burburinho sobre o filme tem aumentado e aumentado, e Linklater tem sido constantemente elogiado, tendo já ganho vários prémios em festivais. Ainda há dois dias ganhou mais um; Melhor Filme dado pela Associação de Críticos de Nova Iorque. Mas mais uma vez eu digo: uma coisa é o conceito, outra coisa é o filme. Por um lado, ‘Boyhood’ é uma experiência cinematográfica ousada, impactante, na qual o espectador se deixa seduzir por esta evolução real das personagens e dos actores que as interpretam, e pela magnífica coesão visual do todo, apesar do filme ter sido filmado ao longo de vários momentos diferentes das vidas de todos os envolvidos. Nestes aspectos, ‘Boyhood’ só pode ser louvado. Mas nunca um filme foi só o seu conceito, a sua história base, a sua estrutura. Tem que valer também como filme. E é aí que a porca torce o rabo. Como experiência cinematográfica ‘Boyhood’ é genial. Como filme, se esquecermos a forma como foi concebido, aí as coisas ficam um pouco mais complicadas de louvar. O famoso crítico Gene Siskel costumava perguntar-se se “este filme é melhor do que um documentário sobre os mesmos actores sentados numa mesa a comer”. Ao ver ‘Boyhood’ este fim de semana no cinema perguntei-me a mim mesmo esta questão várias vezes.

‘Boyhood’ retrata a vida do jovem Mason dos seus 6 anos até aos 18. E é uma vida totalmente banal, a vida que podia ser de qualquer espectador. Há momentos de alegria, de tristeza, mas nunca nada é excessivamente trágico nem excessivamente dramático. É uma vida, e as vidas, no global, não são muito interessantes. Mason vai crescendo. Vai à escola, vai para casa fazer os TPC. Na escola pode ser abordado por bullies. A caminho de casa pode partilhar uma brincadeira com um colega. Em casa pode ter uma birra com a irmã (Lorelei Linklater, a filha do realizador). Pode assistir pela frincha de uma porta a sua mãe e o namorado desta a discutir. Tudo isto é normal e todos nós já passamos por isso. A sua mãe (Patricia Arquette – a actriz em quem mais se sente o peso dos anos a passar…), mãe solteira, é a pedra basilar da família. O seu pai (Ethan Hawke, sempre confortável neste tipo de papel) aparece de vez em quando e depois torna-se uma figura mais certa, com quem as crianças passam um fim-de-semana de 15 em 15 dias e as férias de Verão.

Com o passar dos anos, Mason e a sua irmã vão crescendo em vários lares, já que a sua mãe recasa duas vezes. O momento mais pesado do filme surge quando a sua mãe sofre maus tratos do seu padrasto alcoólico, mas nem isto é muito focado por Linklater. Quando crescem e se aproximam da faculdade, Mason e a sua irmã podem beber umas cervejas e dar umas passas de marijuana, mas nada é muito trágico. Este é um filme sem drogas, sem crime, sem uma única morte de familiares ou conhecidos, sem grandes problemas financeiros (a sua mãe acaba por arranjar um emprego fixo). A maior parte das vidas da classe média americanas não são muito atormentadas pela maioria destes problemas.

Portanto é um filme que vai passando suavemente, enquanto nos vamos envolvendo nos pequenos pormenores da vida de Mason e do seu crescimento, do seu primeiro namoro ao primeiro desgosto, do momento em que começa a questionar os factos da vida (muito incitado pelas suas conversas com o seu pai) até que tem de decidir para que faculdade se quer candidatar e o que fazer com a sua vida. E à sua volta todas as personagens mudam, ou melhor, também vão amadurecendo; o seu pai, a sua mãe, a sua irmã, enquanto outras personagens secundárias vêm e vão.

Se tivesse planos de câmara mais baléticos, se fosse uma produção menos ‘real’ e mais ‘artística’, ‘Boyhood’ bem que podia ser um filme de Terrence Mallick. Assim sendo deixa um sabor amargo na boca. Por um lado é tão simples que é incrivelmente belo, isto é, se o leitor achar que a vida é algo belo. Os diálogos são também um trademark de Linklater e obviamente estão mais uma vez na muche. A evolução da maior parte das personagens é também perfeitamente credível, embora não haja surpresas nem revelações. Os anos passaram e as pessoas mudaram, logicamente. É tudo. Portanto, apesar do filme ir prendendo, ser belo, e irmos assistindo a este contínuo passar dos anos em que a ‘aventura’ da personagem é a sua própria vida, o filme, como filme, é assim tão interessante? A resposta, infelizmente, é não. E é "não" porque há pouco neste filme que eu próprio não conheça, ou até que não tenha feito. E o que não fiz poderia ter feito se tivesse nascido na família ao lado. A minha mãe não casou três vezes, mas o resto são eventos da vida normal de um rapaz. A primeira asneira, o medo do primeiro dia numa escola nova, o primeiro graffiti, o perder e ganhar de amigos, o primeiro beijo, o perder e ganhar da amizade do pai, a descoberta da vocação artística (Mason acaba por se apaixonar por fotografia), a alienação típica da adolescência, o experimentar de um cigarro, a perda da virgindade, o primeiro dia de faculdade. 

A não ser que o espectador tenha menos de 18 anos, estará a ver tudo, ou quase tudo, aquilo que já fez, aquilo que conhece, as experiências pelas quais passou, de uma forma ou de outra, e de um modo tão real que quase adivinhamos o que vem a seguir, tornando-se o filme um pouco previsível. Se o objectivo de ‘Boyhood’ é ser uma bíblia da adolescência, o filme documental fictício definitivo sobre crescer, então é incrivelmente bem sucedido. Mas se em vez de ser uma ficção fosse um documentário pouco se diferenciaria. Se vissemos os mesmos actores, fora de personagem, à mesa a comer, ou a ir à escola ou a falar sobre as suas próprias vidas, o filme não se tornaria menos interessante. E esta é a verdade sobre ‘Boyhood’. Em português o filme chama-se ‘Momentos de uma Vida’. Acho que é um título bem elucidativo. Queremos mesmo ver isso quando vamos ao cinema? Muitas vezes não, a nossa própria vida já nos chega. Eu vivi estas experiências por mim. Não tenho muito interesse em as ver através dos olhos do jovem Mason, que diga-se, vai ficando pior actor à medida que os anos passam. Obviamente o seu casting era um risco por uma panóplia de motivos, e neste caso a criança fofa desabrochou num adolescente bonitinho, sim, mas algo apático, que diz as frases todas com a mesma entoação e tenta desesperadamente ser alternativo. Valem as fortes interpretações de Arquette e de Hawke. É incrível como sustiveram as suas personagens ao longo de 12 anos, filmando às pinguinhas. E assim, também sustêm o filme. 

O filme termina no primeiro dia de faculdade de Mason. Por esta altura, sinceramente, já estava um pouco farto, talvez por o filme ter mais de 2h40min de duração. Editar 12 anos de filmagem não é nada fácil, e parece óbvio que o realizador se viu relutantes em cortar inúmeras cenas. Era preciso capitalizar no tempo investido. Mas um comming of age de quase três horas é inaudito, e por mais fascínio que tenha a peça, chega ao ponto de saturação passadas duas horas. É difícil pedir ao espectador que se sente durante tanto tempo a ver uma vida que não tem nada de extraordinário, em que nada ocorre fora do 'normal'.

Quando começaram a rolar os créditos, tive sentimentos contraditórios em relação a ‘Boyhood’. Para os actores e a equipa técnica foi certamente a experiência de uma vida. Mas para o espectador nem tanto. Em termos técnicos, toda a concepção da filmagem, toda a estrutura do argumento, a incrível paciência, resiliência e capacidade dos envolvidos se manterem focados nos seus papéis durante tanto tempo, para darem coerência ao todo, é inacreditável. A experiência em si, o desafio, a programação a um prazo tão alargado, torna esta obra única na história do cinema, que merece ser vista pelo menos uma vez. Linklater cria uma obra subtil, delicada, mas que não chega a ser pungente apesar de incrivelmente realista, nem é tão artística quanto se poderia supor, pois tem o lustro da típica produção americana. Chega a ser demasiado idílico, embora nunca seja forçado nem cliché. Os diálogos são óptimos, a evolução das personagens natural, e os actores principais responderam ao exigente desafio na perfeição. E por tudo isto estão a chover prémios para ‘Boyhood’ porque tem a dose certa de comercialismo, arte e ousadia que os críticos americanos tanto apreciam.

Mas existe o outro lado, o lado que eu não gostei nada, em ‘Boyhood’. A sua história é demasiado banal para despertar interesse, o filme mostra-me aquilo que eu já sei ou pelo qual já passei, acaba por ser tão morno como são a maior parte das vidas, a personagem principal deixa de cativar a meio do filme, e a duração é incrivelmente excessiva. Por isso é que o cinema apimenta as coisas em relação à vida real. Não o precisa de fazer em termos de história, pode simplesmente fazê-lo em termos visuais (veja-se Malick). Esta abordagem de Linklater, por outro lado, acaba por não ser muito diferente de outros filmes de adolescentes ou das sete séries das ‘Gilmore Girls’ (2002-2007), onde assistimos ao comming of age da pequena Rory, dos 16 aos 23 anos. Não há tanto drama telenoveleiro em ‘Boyhood’, obviamente, mas na essência acaba por ser quase a mesma coisa, o que é um forte senão do filme.

Linklater podia ter criado aqui uma obra imortal. Em vez disso faz apenas um retrato, tira uma foto de 3 horas à adolescência, à típica adolescência americana. Passado o fascínio inicial, principalmente após os primeiros saltos temporais em que de repente vemos todos realmente mais velhos, o filme vai perdendo o seu sabor, até ao ponto em que já o perdeu completamente. “Boyhood’ é uma louvável e inovadora experiência cinematográfica. Mas não é tão ousado quanto poderia ter sido. É brilhante em conceito. Mas a sua história simplesmente não tem assim tantos pontos de interesse para suster 3 horas de filme. Tem tanto fascínio como a vida tem fascínio, e esse é o maior elogio que se lhe pode dar. Cabe agora ao leitor julgar por si se acha a vida fascinante ou não, e se está disposto a ver um filme tão longo que a retrate.

1 comentários:

  1. Por acaso para mim foram 3 horas fáceis de passar e encontrei várias coisas na história que me interessou bastante. A história é tão simples e realizada de forma tão bela que nunca me fartei durante o filme. Mas admito que gostei mais do que se passava à volta do personagem principal do que da vida do próprio. A quase ausência de sentimentos e emoções do actor principal (se calhar por não ter grande jeito para a coisa) chega a ser interessante ao ponto de que ele vê tudo a passar-se na vida dele sem quase actuar nelas e isso de certa forma colou-me à história.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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